Antes de abrir os olhos é importante, e tão importante que repito, antes de abrir os olhos é importante, apalpando ao redor, analisar se não há migalhas de sonhos em tua cama, banco de praça, sarjeta ou onde quer que você tenha escolhido, ainda que involuntariamente, passar a noite (ou o dia, caso a noite lhe seja por demais sombria para ser desafiada de olhos fechados), porque o grande risco de se abrir os olhos e encontrar um rabo de sonho, ainda que escapulindo dela, passeando pela tua realidade, é que isso pode escancarar uma porta irreversível. Portanto, antes de assumirmos o fim do idílio ou do lúgubre que foi nosso onírico particular, antes de desatarmos nossas pálpebras e limparmos a poeira da solda dos cantos, devemos seguir alguns passos fundamentais.
Mas, antes, também, não esqueça que a tua realidade influencia a dos outros (com o inverso não é diferente, mas quanto a isso você nada pode fazer) e por isso não leia esta e as próximas páginas distraidamente, repetindo o que é de costume quando tem nas mãos aqueles manuais que folheia pensando na grama que deve cortar no dia seguinte ou no perdão que deveria ter implorado há tantos anos. Leia com atenção, sem preocupar-se como o excesso dela, como se você fosse, num submarino, o responsável pelo fechamento hermético da escotilha antes da submersão.
Foi sonho ou pesadelo?, é a primeira - e única - pergunta que você deve se fazer, mas esta não é uma resposta simples porque um tema ou emoção, analisados isoladamente, podem suscitar interpretações equivocadas. Uma onda gigante, a título de exemplo, jamais seria para um surfista o desespero que significa para o sobrevivente de um naufrágio. Da mesma forma, a alegria de reencontrar quem nos estufa de saudade pode ser considerada um pesadelo se, no último encontro (quando, mesmo acordados, despertamos), descobrimos naquela pessoa um monstro.
Foi sonho?, não se preocupe, basta incutir em si, ainda que um milésimo de segundo, antes da lucidez, a idéia de que está sendo acordado pela música aguda no rádio longínquo, pela pamonha oferecida, seduzindo a sua fome pelo carro de som, pelo despertador indecoroso, pelo telefonema irresponsável, pelo frio, pelo calor ou até mesmo pelo puro e simples fim do sono, que jamais aconteceria, mas ninguém precisa saber, se um de nossos sentidos não fosse devidamente cutucado. Assim, a realidade é que entrará em seu sonho e jamais o contrário
Foi pesadelo?, acorde bem devagar, de preferência leve um minuto (suponha os segundos, apenas, jamais procure o relógio) antes de abrir os olhos assustado com aquilo que viu, presenciou ou pressentiu que aconteceria, senão você até se imaginará desperto, mas a verdade é que estará definitivamente agrilhoado àquele pesadelo, tomando o seu lugar, na sua antiga, doce, despreocupada e maternal realidade, aquele ou aquilo que se refestelou assistindo à sua angústia e que você só não reparou a gargalhada porque estava ocupado demais sentindo medo.
Se você estiver pensando agora que a sua realidade está muito distante de ser digna dos melhores sonhos, destituída das qualidades que expus há pouco, meus sinceros sentimentos. Talvez você não tenha parado para refletir que está lendo isto aqui depois, talvez bastante depois, de um dia ter acordado sobressaltado, esbugalhando os olhos num átimo para tentar escapar, em vão, daquele primeiro pesadelo onde até hoje mora.