quarta-feira, abril 22, 2009

Borges (Microcômicas L)

Postou-se entre dois espelhos para, mesmo após a morte, possuir um reflexo observando-se intacto no infinito.

quinta-feira, abril 16, 2009

Para Abrir os Olhos (Dicas e Truques Para Abrir e Fechar os Olhos, cap. 1)

Antes de abrir os olhos é importante, e tão importante que repito, antes de abrir os olhos é importante, apalpando ao redor, analisar se não há migalhas de sonhos em tua cama, banco de praça, sarjeta ou onde quer que você tenha escolhido, ainda que involuntariamente, passar a noite (ou o dia, caso a noite lhe seja por demais sombria para ser desafiada de olhos fechados), porque o grande risco de se abrir os olhos e encontrar um rabo de sonho, ainda que escapulindo dela, passeando pela tua realidade, é que isso pode escancarar uma porta irreversível. Portanto, antes de assumirmos o fim do idílio ou do lúgubre que foi nosso onírico particular, antes de desatarmos nossas pálpebras e limparmos a poeira da solda dos cantos, devemos seguir alguns passos fundamentais.

Mas, antes, também, não esqueça que a tua realidade influencia a dos outros (com o inverso não é diferente, mas quanto a isso você nada pode fazer) e por isso não leia esta e as próximas páginas distraidamente, repetindo o que é de costume quando tem nas mãos aqueles manuais que folheia pensando na grama que deve cortar no dia seguinte ou no perdão que deveria ter implorado há tantos anos. Leia com atenção, sem preocupar-se como o excesso dela, como se você fosse, num submarino, o responsável pelo fechamento hermético da escotilha antes da submersão.

Foi sonho ou pesadelo?, é a primeira - e única - pergunta que você deve se fazer, mas esta não é uma resposta simples porque um tema ou emoção, analisados isoladamente, podem suscitar interpretações equivocadas. Uma onda gigante, a título de exemplo, jamais seria para um surfista o desespero que significa para o sobrevivente de um naufrágio. Da mesma forma, a alegria de reencontrar quem nos estufa de saudade pode ser considerada um pesadelo se, no último encontro (quando, mesmo acordados, despertamos), descobrimos naquela pessoa um monstro.

Foi sonho?, não se preocupe, basta incutir em si, ainda que um milésimo de segundo, antes da lucidez, a idéia de que está sendo acordado pela música aguda no rádio longínquo, pela pamonha oferecida, seduzindo a sua fome pelo carro de som, pelo despertador indecoroso, pelo telefonema irresponsável, pelo frio, pelo calor ou até mesmo pelo puro e simples fim do sono, que jamais aconteceria, mas ninguém precisa saber, se um de nossos sentidos não fosse devidamente cutucado. Assim, a realidade é que entrará em seu sonho e jamais o contrário

Foi pesadelo?, acorde bem devagar, de preferência leve um minuto (suponha os segundos, apenas, jamais procure o relógio) antes de abrir os olhos assustado com aquilo que viu, presenciou ou pressentiu que aconteceria, senão você até se imaginará desperto, mas a verdade é que estará definitivamente agrilhoado àquele pesadelo, tomando o seu lugar, na sua antiga, doce, despreocupada e maternal realidade, aquele ou aquilo que se refestelou assistindo à sua angústia e que você só não reparou a gargalhada porque estava ocupado demais sentindo medo.

Se você estiver pensando agora que a sua realidade está muito distante de ser digna dos melhores sonhos, destituída das qualidades que expus há pouco, meus sinceros sentimentos. Talvez você não tenha parado para refletir que está lendo isto aqui depois, talvez bastante depois, de um dia ter acordado sobressaltado, esbugalhando os olhos num átimo para tentar escapar, em vão, daquele primeiro pesadelo onde até hoje mora.

quarta-feira, abril 15, 2009

Amnésia (Microcômicas XL)

Era um homem feliz: levaria 6 minutos para perceber que sua memória armazenava apenas os últimos 5.

segunda-feira, abril 13, 2009

Deus Ex Machina (Microcômicas XXXVIII)

Quando, o planeta já povoado por máquinas, elas perguntarem-se o que é Deus, herdarão nossa resposta automática: uma Energia.

quinta-feira, abril 09, 2009

Saudade (Microcômicas XXXV)

Jamais te esquecerei, disse, enxugando as lágrimas do rosto, derramadas pelo rapaz que não lhe era estranho.

quarta-feira, abril 08, 2009

sexta-feira, abril 03, 2009

Madame B. (VI)

De pequena já era distraída, dizia Madame B. Certa vez, para impedir meus pensamentos de acompanharem a mosca que passava ou de grudarem na parede descascada ou de fugirem com o latido do quintal vizinho, tapei-me com um cobertor, transformando-me numa barraca, não deixando espaço para que a escuridão saísse. Aqui (pensava eu) não tenho inseto que me acompanhe nem parede que me convide nem barulho que se intrometa. Mas fracassei: sempre esquecia de levar os pensamentos para debaixo do cobertor, comigo.

Madame B. (VII)

Depois de perguntar em vão, à mãe, o porquê da cor do céu, da distância do infinito, da fagulha das estrelas, do tamanho da hora, da guerra e outros porquês que também não sei explicar, finalmente a criança obteve uma resposta: um tapa.

Não é assim que se trata uma criança, afirmou Madame B.

Como se atreve, alguém que não tem filhos, a fazer este comentário?

Respondeu Madame B.: E como se atreve então, a senhora, a fazer perguntas?

Madame B. (VIII)

No Natal era assim, segundo Madame B.: passava distraída, observando a alegria da festa, enquanto presentes eram colocados na sua mão. Vendo que ela não abria uma caixa, o parente perguntou: Não queres saber o que existe lá dentro?

A menina quis responder isso: Sou metódica. Procuro descobrir, primeiro, o que há fora dela.

quinta-feira, abril 02, 2009

Madame B. (I)

Madame B. contava que, ao nascer, antes mesmo da palmada do médico, chorou. Desde muito nova Madame B. não suportava a injustiça.

Madame B. (II)

Jurando que jamais contaria o segredo de Madame B., caso ela lhe explicasse porque nunca fora vista longe da rua em que morava (e que era, não por acaso, a mesma da mercearia, da escola, da igreja, da biblioteca e da rinha de galos), o rapaz ouviu a explicação: Uma moeda, quando roda, dá a impressão de ser uma bola maciça. O mundo e todas as coisas que parecem uma esfera são na verdade, a meu ver, como uma moeda. Pequena, se uma bolinha. Gigantesca, no caso do planeta. A minha rua é exatamente a borda lateral, achatada, desta moeda. E se dela me desviar, fatalmente cairei.

O rapaz perguntou, com uma sobrancelha levantada e a outra em repouso: E como a senhora explica as pessoas que não despencam quando se afastam da sua rua?

Elas não têm medo de errar (Madame B. disse e piscou um olho).

Da hora seguinte em diante, e até hoje, o rapaz jamais foi visto. Alguns dizem que, na noite anterior ao dia em que ele não mais foi encontrado, ouviram um grito forte que, aos poucos, tornou-se agudo e longínquo, como se alguém caísse num precipício.

Madame B. (III)

Carta do leitor: Madame B., meu nome é Y. e sou obrigado a concordar com outros leitores, tão decepcionados quanto: como alguém que nos serve de exemplo pode chamar de sua uma rua que contém rinha de galos, dando-nos a entender algo que me recuso a?

Resposta de Madame B.: Caro senhor Y., que isto, sim, lhe sirva de exemplo: qual a vantagem de se proclamar destituído de vícios quem não confronta a vontade de?

quarta-feira, abril 01, 2009