I
O dragão bafeja o vapor amargo sobre roldanas de ossos e músculos. Mãos frágeis frustram-se ao retesar a corrente sem elos. Há que se merecer o pão que sustente o flagelo. O uivo alerta para a chegada do novo apocalipse (Hora de morrer, ele avisa, indiferente ao cego que tateia paredes em brasa para fugir do inferno). Cárie exposta. Fratura. Pergaminho da pele amarelecida por traças e fungos. Água manipulando o bisturi que degola a órbita. Um prisioneiro grita, apontando o fogo para a indiferente cumplicidade dos sociopatas. Para que, se é o cheiro da carne que os apetece? Presenteemo-los, os sádicos, com o nosso calar. Coloquemo-los de joelhos implorando nossa angústia. Ergamos um sonoro silêncio prostrados na brasa fumegante e jamais nos chamarão novamente para o combate. Mas somos fracos: sorrimos. E eles sabem que este é o nosso maior disfarce.
As hordas passam aflitas, carregando pedras que não lhes pertencem, atirando-se ao chão pela migalha que não apetece, orgulhosíssimas de se verem chamadas de séqüito. Não convidemos os canibais para o banquete se não quisermos, como bons anfitriões, mergulhar na sopa.
Mas o conclave me atira ao fogo antes mesmo da convocação. Não há que se inquirir, antes do veredicto? Não há que se fazer o hediondo, antes do processo? Em meio à palha em chamas suplico para uma platéia adormecida: água. E para minha surpresa, é exatamente isto que me oferecem: água. Agradeço-lhes, alivio-me com o copo e só então percebo a armadilha. A dor é maior quando lembramo-nos de quando ela não existia.
A engrenagem exige a sincronia dos membros, mas como remar se roubaste-me os braços? A indignação dos companheiros com a súbita atrofia, entretanto, não supera a de Tritão. Atira-me, caolho, um peixe-espada, como quem despreza um dardo mirando-me a testa. Resultado: 50 pontos. Resgatar os membros ou as faculdades? O que é mais importante: a força ou a lucidez? Mas como decidir, com o pensamento atravessado pela lança que se debate, sufocada pelo meu sangue?
Os caramujos esmigalhados pela sola escorregadia formam garranchos irreconhecíveis no convés. Tento interpretar as manchas como um experimentado copromanta. Em vão. Sou como uma criança olhando para o céu e descobrindo que nunca houve lá em cima dragões, rostos e trens a vapor, apenas nuvens. Resta-me apenas aguardar a chegada da cigana, sabendo que nenhuma revelação indicará o fim do labirinto insondável. Aquela que deflorará o oculto expelindo à fórceps o significado da borra é a mesma que esculpiu em segredo a mensagem dentro da xícara.
II
Em meio à viagem em que o único murmúrio é o do remo afagando a pele do lago, o condutor estende-me a falange marmórea, esperando que esta reluza, também, com a minha moeda mas não tenho bolsos costurados à nudez. Vendado com o breu sou levado à prancha e despeço-me sem que me retribuam o aceno. Sou desprezado até mesmo pela morte.
III
A dor é a de um navio-fantasma que afunda depois de anos errando pelo oceano. Não há rocha que justifique o naufrágio. Não há ninguém para acompanhá-lo em sua última jornada.
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Um comentário:
Vou tentar escrever tão frutiferamente como você.
Juro que acho o que vc escreve de uma musicamidade impar. Mas, pelo amor de Santo Cristo, me explica o que cada palavra, perdida em frases sem virgulas que dizer.
Lindo, mas para mim, confuso.
Perfeito, por causar justamente esta dúvida.
Maravilhoso, por me faltarem palavras rebuscadas.
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