sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Pílula

A propaganda do seu medicamento, uma pílula milagrosa, foi o boca a boca e isso bastou para que uma grande fila se formasse à porta de sua pequena farmácia: a promessa de uma cor de 2 horas debaixo do sol com apenas 2 minutos de exposição.

Só que, ao contrário do esperado, em vez de dar um tom mais escuro à pele de quem ingeria a tal pílula, eis que as pessoas engordavam. Quando nova fila se formou, agora para devolver o produto, aparece o farmacêutico com a explicação: Ora, se o prometido era que o cliente ficaria mais bronzeado, não é isso que acontece quando o indivíduo expõe mais massa aos raios solares?

Todos voltaram para casa, envergonhados. O péssimo farmacêutico era um excelente filósofo.

A Cidade Triste

O forasteiro que chegou plantando flores pela Cidade Triste percebeu que elas sempre eram arrancadas mas não se intimidou: mesmo sabendo que, chegada a noite, ela já não estaria mais ali, na manhã seguinte colocava outra flor igual e no mesmo lugar da anterior.

Até que um dia, sem avisar, em vez de flores plantou ervas-daninhas e desapareceu.

Desavisadas, as pessoas começaram a arrancá-las e continuaram arrancando as ervas-daninhas até transformar aquela Cidade Triste num lugar muito, muito feliz.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Horizonte

Saiu com seu pequeno barco (Enrolando-a qual novelo, deve caber aqui) e a determinação de presentear a linha do horizonte à amada. Enfrentou todo tipo de ondas e tempestades, inofensivas diante da certeza irrevogável de que aquele seria o presente perfeito (Quantos sóis não estarão guardados dentro dela?) para aquela que sabia transformar as poucas horas juntos - observando o sol se deixar ser devorado, levando consigo o dia - nas melhores de sua vida.

Voltou ao amanhecer, desolado. Não encontrou nenhuma linha no horizonte: Quando lá cheguei já era noite e esqueci-me da lanterna.

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

Queixa

Ela me persegue, delegado. Onde quer que eu vá, se ela já não está lá é porque já vai chegar. Estou com medo e por isso vim. É perigosa, me alertaram, mas não dei ouvidos, como todo apaixonado. Estou decidido: quero dar queixa. Hoje foi o meu limite. Acordei e mais uma vez ela estava ali. E não saiu para que eu tomasse banho – veja meu estado – para que eu pudesse trabalhar – fui demitido – e nem para que eu almoçasse – sentou em cima da mesa, um vexame – até eu perder a paciência e vir aqui. Desde quando isso acontece? Desde que ela partiu, delegado, para nunca mais voltar.

Sr. Pompílio

Começou como uma pequena verruga no pescoço aquela cabeça que uma semana depois tinha o mesmo tamanho da cabeça original do Sr. Pompílio. No ínício o Sr. Pompílio não se importou. Desde que sua mulher morrera, 10 anos antes, não tinha mais com quem conversar e aquela cabeça nova foi uma excelente companhia. Exceto pelo fato de que, mais jovem, era uma cabeça que gostava da boemia e, mais forte, acabava levando o Sr. Pompílio, mesmo contra a vontade, para festas que varavam a madrugada e cansavam muito a cabeça original que, mais idosa, necessitava de mais descanso.

Um dia, exausto das farras da cabeça vizinha, o Sr. Pompílio decidiu elimina-la e deu um tiro na cabeça. Na outra, claro. A justiça entendeu como crime e não tentativa de suicídio, como alegaram os advogados de defesa, e o réu foi condenado à prisão perpétua.

O Sr. Pompílio não tem nenhuma reclamação da cama nem da comida da prisão. A única coisa que o incomoda é o mau cheiro que aquela caveira cisma em exalar durante a noite.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O Pensamento

Dá uma preguiça, esse troço. Quando termina, só. Porque no começo é o contrário: tudo que a gente quer é dar procedimento.

É assim: a gente ta ali, cheio de vontade de não fazer nada, cheio de preguiça só de pensar em fazer alguma coisa, quando vem o pensamento. Pensamento não tem preguiça de nada, você sabe. Nenhum deles. Ficam ali, rondando, passeando em volta da gente, só olhando pra nossa fuça. De repente, quando a gente se distrai, dão um pulo e entram na cabeça. Aí é aquele rebuliço, aquela ventania que dá no pobre do cérebro, que numa hora tava ali tão cheio de preguiça quanto a gente e na outra, coitado, já ta rodopiando dentro da cachola.

E pensamento tem de todo tipo e tamanho, que nem verruga. Tem grande que a gente já acostumou, tem pequeno que incomoda mais porque é novidade, tem dolorido que volta não se sabe de onde, tem aquele que a gente só sabe que existe porque de vez em quando dá uma pontada e tem aquele que acaba com qualquer sossego e só faz a gente lembrar que tava com preguiça depois que volta para a prostração: é o cabeludo. Não tenho nada contra o pensamento cabeludo, quero deixar bem claro, mas essa leseira que dá depois, me mata. É daquelas que a gente pensa que nem toda a rede do mundo, balançando até o final dos tempos, vai dar jeito no cansaço.

Mas o depois é bom. Aquele adiante que fica no meio de uma preguiça e outra, quando a gente nem lembra que tava descansando e nem liga pro exausto que fica depois. É por isso que eu deixo meu corpo descansar, mas a cabeça não. Me confere: posso estar deitado, de olho fechado, de pé pra cima, que estou sempre matutando. Porque pensamento que a gente cria, não atrapalha. O problema é esse danado de pensamento que não é nosso e adora uma cabeça vazia. É como se ela fosse um descampado com duas árvores e uma rede pro corpo daquele pensamento descansar.

A Ponte

Um dia, um andarilho encontrou um velho que lhe disse:

- Em poucos minutos você irá passar por um cego que precisa da sua ajuda para seguir viagem. No caminho que ele precisa seguir, há um abismo à direita. Por favor, não o deixe se aproximar do abismo. E tampouco conte que este abismo existe, senão ele terá medo de continuar a viagem.

O andarilho aceitou o pedido do velho e em poucos minutos, ao encontrar este cego, deu-lhe a mão e os dois seguiram viagem.

Durante todo o trajeto, percebia que o cego oferecia resistência cada vez que tentava puxá-lo para a esquerda, a fim de se afastar-se da beira do abismo. Mas não disse nada. Receava que, ao fazê-lo, o cego, com medo, quisesse abdicar da sua viagem. E assim foram durante um longo tempo. Até que, num certo momento, o andarilho não resistiu e falou ao cego:

- Toda vez que tento me afastar para a esquerda, noto que você oferece uma resistência. Por quê? – perguntou tomando todo o cuidado para não citar o abismo.

- Um velho que encontrei no caminho me disse que você viria ao meu encontro - respondeu o cego - e me pediu para, na viagem que você precisava seguir, não deixá-lo se afastar para a esquerda. O curioso é que eu pensei que fosse o contrário: sempre que tento puxá-lo para a direita, sinto que você é quem oferece resistência.

De longe, o velho observava feliz que os dois cegos já estavam quase no final da ponte que cruzava o precipício.